Substitua "sexo, drogas e rock and roll" por "samba, mé e Trapalhões" e então você terá uma ideia bem razoável de quem foi Mussum, humorista cuja morte completa 20 anos nesta terça-feira (29).
O "resumo" está no subtítulo do livro "Mussum forévis", do jornalista Juliano Barreto, que acaba de ser lançado. Nada para ser levado tão a sério, o autor explica ao G1, por telefone. "Se o Mussum fosse um bêbado, não conseguiria honrar o compromisso de trabalhar tanto."
Barreto diz que a ideia da biografia surgiu, muito apropriadamente, num bar. Em 2011, sugeriu a um amigo que escrevesse sobre o integrante dos "Trapalhões" e do grupo Os Originais do Samba. O parceiro devolveu a proposta. "Eu estava bebendo lá, sem compromisso, não estava avaliando. Surgiu numa conversa de boteco", confessa.
Três anos e "mais de cem entrevistas" depois, o biógrafo lista as principais surpresas: Mussum foi amigo de Garrincha, era um sambista mais talentoso do que se podia pensar, combatia o racismo "sem comprar briga", sabia dançar muito bem, era rigoroso com os filhos e não deixou magoada nenhuma de suas cinco ex-mulheres.
Também houve dificuldades. "Para começo de conversa, para você resgatar a história da família de uma pessoa pobre, é muito difícil", afirma. "Uma pessoa pobre muitas vezes não tem nem a certidão de nascimento". Na de Mussum, estava escrito Antônio Carlos Bernardes Gomes. E Antônio Carlos, de qualquer modo, "foi um cara que curtiu bem a vida, isso dá pra falar tranquilamente", avalia Barreto. Leia, a seguir, os principais trechos da conversa.
G1 – O subtítulo do livro lista 'samba, mé e Trapalhões'. Está em ordem de importância da vida dele?
Juliano Barreto – Foi uma brincadeira com "sexo, drogas e rock and roll" – só que a versão do Mussum. Apesar de gostar de música, de curtir jazz, música latino-americana, grandes cantores como Frank Sinatra, Tony Bennett, Sarah Vaughan, o samba realmente era o estilo preferido dele.
G1 – Por que escrever sobre Mussum, e não sobre Didi, Dedé ou Zacarias?
Juliano Barreto – É aquela coisa: você está no bar e sempre tem aquela piadinha, alguém falando sobre "cevadis" [termo que o humorista usava para se referir a cerveja]. O Mussum está sempre muito presente, pertence a este ambiente.
G1 – Qual a maior diferença entre o personagem Mussum e o Antônio Carlos Bernardes Gomes?
Juliano Barreto – É justamente esta: o personagem sempre está bebendo, e o Antônio Carlos bebia bastante, mas não sempre. Era uma pessoa que trabalhava muito. Durante um ano na vida do Mussum, tinha mais ou menos o seguinte: dois filmes para o cinema; um programa de domingo que era gravado duas vezes por semana, das dez da manhã até duas da manhã do dia seguinte; e mais a gravação de discos...
O Mussum continuou com o Originais do Samba, e depois seguiu em carreira solo. E ainda tinha mais discos dos "Trapalhões", shows em circo, ensaio da Mangueira, trabalhos sociais... Se ele fosse um bêbado, não conseguiria honrar o compromisso de trabalhar tanto.
A diferença era realmente a disciplina, o profissionalismo. Os integrantes do Originais do Samba contam que ele controlava o grupo, para ninguém beber muito. Mussum era o chefão, um cara sério, e tinha repertório, um músico talentoso e muito exigente. Tinha esse cuidado com a educação dos filhos, de ser discreto na vida pessoal. Bebia pra caramba, saía pra caramba, mas você não vê escândalo nessa história.
G1 – Mas no livro você escreve que o Mussum chegava a roubar pinga de macumba?
Juliano Barreto – Uma coisa de moleque. Foi um cara que curtiu bem a vida, isso dá pra falar tranquilamente. Apesar de ter tido uma vida muito curta.
G1 – Durante suas pesquisas, chegou a verificar se Mussum alguma vez demonstrou incômodo por ser alvo de piadas racistas, que o diminuíam por ser 'negão'?
Juliano Barreto – Não. Isso passava ao largo. E ele não gostava de tocar nesse assunto. Na cabeça dele, o racista ganha toda vez que é correspondido. Se ele ofende você, ele está ganhando. Publicamente, a declaração dele que colhi e reproduzi do livro é: "Não existe racismo, o que é existe é falta de educação. A pessoa que consegue estudar, se formar e se qualificar, vai te oportunidade e ter vida boa".
Ele dava esse tipo de declaração para cortar esse tipo e conversa [sobre racismo], mas era muito ativo na valorização da cultura afro-brasileira. A obra do Originais do Samba tem muito de um ritmo ancestral do samba, o jongo, e o Mussum não era indiferente a isso. Ele apenas não gostava de entrar nessa polêmica, porque realmente é um assunto sem fim.
G1 – Mas ele não sofria preconceito?
Juliano Barreto – Ele sofria preconceito, existem histórias. O jeito pessoal, o jeito dele de lidar, era batendo. Mussum não aceitava quieto. Nos anos 1970, ele era o único negro que podia mandar o chefe à merda. Quando Renato Aragão, na verdade o personagem Didi, o chamava de "grande pássaro", Mussum chamava de "Paraíba". Estou falando sobre o Didi, para deixar claro que era em cena. Se o Didi chamava de "Negão", Mussum respondia que "negão é tua veia!".
Ele não aceitava isso, brigava do jeito dele, discreto. Não comprava essa briga publicamente, mas na carreira você vê essa marcas de um cara que não aceitava preconceito vigente.
G1 – No prólogo, você cita que o público desconhece parte da vida e da obra do Mussum. Foi para tirar essa obra do esquecimento que fez o livro?
Juliano Barreto – O Mussum é muito lembrado, todo dia: tem camiseta, vídeo no YouTube, piadinha, perfil no Twitter. Ele não foi esquecido. Mas, quando eu falo que existe um filme como "Os trapalhões e o auto da compadecida", as pessoas se espantam, não conhecem. 'Sério?!", perguntam. Eu falo: "Sério, e o Mussum fez o papel de Jesus".
A obra musical é menos conhecida ainda. E mesmo nos “Trapalhões” tem isso. O Mussum é um personagem que sempre está bebendo, realmente é o que ele mais faz, mas também tinha papel de mulher, policial...
As pessoas vão descobrir outras facetas do Mussum como artista, na totalidade. Mas ele era ritmista, passista, sabia dançar. Se você pega um vídeo com o Mussum dançando –ele era foda, dançava bem o suficiente para sair na frente da escola de samba, foi um passista campeão na Mangueira e aqui em São Paulo, na Camisa Verde e Branco. Um artista completo, que as pessoas realmente não conhecem. O Mussum é lembrado, mas não é conhecido. Esse é o ponto instigante.
G1 – Qual foi a maior surpresa, ou as maiores surpresas que você descobriu?
Juliano Barreto – Uma coisa que surpreendeu é que Mussum e Garrincha foram amigos. Dois ícones brasileiros, engraçados, muito queridos... Tomavam cerveja juntos, um contava piada para o outro.
Eu sou muito fã de Jorge Ben, e achava que conhecia tudo, do primeiro disco ao último. De cabeça. E aí, pesquisando Os Originais do Samba, descobri que tem muitas músicas deles que são do Jorge Ben, ou com ele compondo ou ele participando. E músicas muito boas. E, quando você vê os caras tocando com Elis, você diz: "Uau, os caras não eram só engraçadinhos". Porque a imagem que ficou é de um conjunto que faz músicas engraçadas. O que é verdade, mas eles têm uma carreira.
E o Mussum tocou na França, ganhou prêmio, vendeu pra caramba. Porque, para mim, o Originais do Samba era aquela coisa de “peladona do primeiro andar”, só que é muito mais amplo do que isso.
G1 – Num trecho, você conta que o Mussum vivia dando conselhos e era rigoroso com os filhos. E fazia piada: 'Burro preto tem um monte, mas preto burro não dá!'.
Juliano Barreto – Isso é legal também, porque é o lado humano, o lado de família mesmo. É importante ter falado com a família, porque os caras que tocavam com ele e tomavam cerveja de madrugada não sabiam disso. Para você ver como era o cara em casa. Era um pai comum: os filhos saíam de noite, e ele ficava esperando. Foi surpreendente, isso humanizou muito o Mussum.
G1 – Qual a maior dificuldadepara escrever o livro?
Juliano Barreto – Foram muitas. Para começo de conversa, para você resgatar a história da família de uma pessoa pobre, é muito difícil. Sei lá, se fosse o Chiquinho Scarpa, que tem brasão da família, muita foto, muita história, seria mais fácil, talvez. Mas uma pessoa pobre muitas vezes não tem nem a certidão de nascimento. É difícil demais achar uma história dessa.
Foi muito gratificante achar uma foto do Mussum aos 13 de anos de idade, uma foto do boletim da escola. Estava perdida numa gaveta, mofando, nunca ninguém tinha ido atrás. A maior dificuldade, então, foi montar o começo dessa história. Muito pouco se sabia da infância e da adolescência do Mussum – era uma área cinzenta.
G1 – A família do Mussum vetou alguma coisa do livro?
Juliano Barreto – Não, zero. Zero mesmo. Leram o livro só quando foi lançado. Não viram a capa, não pegaram o original... Confiaram cem por cento. O termo "biografia autorizada" virou um palavrão de um ano para cá. Porque autorizado virou sinônimo de "chapa branca" – e não autorizado, de coisa independente. E não é nem uma coisa nem outra. Uma biografia não autorizada corre o risco de ser superficial.
No meu caso, tive acesso a correspondência, fotos, histórias de parentes, e ninguém teve nenhuma interferência. Tanto que falei com as cinco ex-mulheres.
G1 – Nenhuma falou mal do Mussum?
Juliano Barreto – Nenhuma delas conseguiu falar mal do Mussum. Ele não deixou ninguém com gosto amargo na boca. Não deixou nenhum inimigo. Aí, percebi por que a família liberou. Ninguém tem uma história do tipo "ele me sacaneou". Mussum foi honesto. Era um cara com falhas, como todo mundo, mas era muito querido.
Todos os filhos gostam dele, que realmente soube lidar com situações difíceis e não tem um podre. E não porque os podres foram vetados. É porque realmente não achei. Procurei bastante, e não achei.
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