Elio Gaspari, O Globo
Dezoito de setembro de 1944: Roma estava sob controle das tropas americanas, Mussolini já havia sido passado nas armas. No Palácio da Justiça, o ex-prefeito da cidade esperava a audiência do processo que respondia por ter entregue aos alemães uma lista de 50 presos para completar a lista de 330 italianos que seriam executados em represália a um atentado em que a Resistência matara 33 soldados alemães. No prédio, como testemunha, estava Donato Carretta, diretor da prisão de Regina Coeli, de onde saíram muitos dos presos. Uma mulher reconheceu-o e gritou: “Assassino, você entregou meu filho aos alemães”.
Ele começou a apanhar no tribunal. Levaram-no para a rua e pediram que um motorneiro passasse com o bonde por cima dele. O homem recusou-se. Chamaram-no de fascista, mostrou sua carteirinha do Partido Comunista e foi em frente.
Mataram Carretta a pauladas e penduraram seu corpo da porta da prisão que dirigira. Seu linchamento lavou a alma de muita gente. Havia sete mil pessoas na cena. Quem foi o culpado? O outro.
Novembro de 1944: Carretta foi inocentado da cumplicidade com os crimes alemães. Em sua defesa apresentaram-se três presos cuja fuga ele facilitara: Giuseppe Saragat e Sandro Pertini (que viriam a presidir a Itália), bem como o líder socialista Pietro Nenni.
Linchamentos deixam lembranças amargas. Lula diz que presenciou o de um empresário do ABC que atirara num trabalhador. Quando narrou o episódio, foi econômico nas palavras. Eles são disparados por dois sentimentos. O primeiro, selvagem, é o da justiça com as próprias mãos. O segundo é produto de uma racionalização que, trocada em miúdos, cabe num simples “bem feito”.
Essa modalidade aplica-se não só para casos de violência física, mas até mesmo para tolerar constrangimentos humilhantes. Por exemplo: obrigar o caixão de João Goulart a seguir, sem paradas, de Uruguaiana até São Borja. Ou ainda: manter o ex-deputado José Genoíno durante três dias em regime fechado.
Houve algo de teatral nas cenas das prisões dos mensaleiros e houve algo de irracional trancando-se em celas cidadãos condenados a regimes semiabertos. Isso vai para a conta do ministro Joaquim Barbosa. Na conta dele e de todos está a situação de Genoíno. Trata-se de um homem de 67 anos que em julho passou por uma cirurgia cardíaca de emergência de alto risco que durou seis horas.
Trocaram-lhe um pedaço da aorta por um tubo de um palmo de extensão. Sem diagnóstico, estaria morto no dia seguinte. Ele ficou internado durante 26 dias e sofreu uma leve isquemia cerebral. Desde o momento de sua prisão Genoíno teve picos de hipertensão que, no seu quadro, podem matá-lo ou mesmo incapacitá-lo. Isso tanto pode acontecer jogando bola em Ubatuba ou numa cela em Brasília.
Na segunda-feira Joaquim Barbosa pediu um parecer ao procurador-geral para que se decida se ele pode ficar preso em casa, bem como a duração desse benefício. Podia ter feito isso antes, pois a cirurgia de Genoíno foi amplamente noticiada.
É prerrogativa do Judiciário atender ou negar o pedido de prisão domiciliar, baseando-se em pareceres de médicos credenciados pelo Estado. Passará algum tempo e todos os participantes do jogo do “bem feito” acharão que o malfeito, quando comprovado, foi responsabilidade do “outro”.
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